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13 anos

in

de

pen

dente

por ANA CARLA SANTIAGO
e GUSTAVO HENRIQUE

Coquetel Molotov: bomba incendiária, de fabricação

caseira,  geralmente usada em protestos

ou guerrilhas

Em 2005, um dos vários anos em que produziu o No Ar Coquetel Molotov, festival de música independente que acontece anualmente no Recife e em outras cidades brasileiras, Ana Garcia conversava com o empresário da banda norte-americana The Kills, quando aconteceu o que ela menos esperava: recebeu um “tapa na bunda”, com a maior naturalidade, do seu colega de profissão. Ficou anestesiada. Sem reação. Mas, na época, achou tão normal o tratamento que preferiu ignorar. “Eu achava aquilo natural. A gente está tão acostumada a viver em um ambiente machista que situações acontecem e você nem entende que aquilo ali foi uma agressão. Aí você tira de letra… Por isso eu não dava o devido valor a essas situações”, relembra.

Filha de um chileno e uma brasileira, ela nasceu no Recife, em 1980, mas alternava seu tempo entre a capital de Pernambuco e a da Paraíba, junto à família. Morou nos Estados Unidos, onde aprimorou bastante seus conhecimentos musicais. Quando voltou ao Brasil, sabia apenas de uma coisa: queria trabalhar com música. E foi investindo nesse desejo que ela se tornou produtora, desde 2004, de um dos festivais de música independente mais bem sucedidos do país: o Coquetel Molotov  - ou apenas “Coquetel”, como ela chama.

“QUANTOS FESTIVAIS DE  MÚSICA INDEPENDENTE  TÊM MAIS DE 13 ANOS E  SÃO DIRIGIDOS POR MULHERES?”

Numa tarde de quinta-feira, Ana nos recebeu em seu apartamento, localizado em uma área nobre de Boa Viagem, perto da praia, para conversar sobre sua carreira de produtora. Apesar do sucesso, ela é uma das poucas que tem a sorte de conseguir estar à frente de um projeto grande, que possui um enorme patrocínio privado, mesmo com todo o machismo presente no meio. “Até hoje, se você pensar, quantos festivais no Brasil são dirigidos por mulheres? Reformulando a pergunta: quantos festivais de música independente têm mais de 13 anos e são dirigidos por mulheres?”, ela questiona, referindo-se ao seu trabalho à frente do Molotov.

Como seus pais são musicistas clássicos, Ana Garcia cresceu em um ambiente artístico. Segundo ela, era comum a Orquestra Sinfônica de João Pessoa ensaiar na sala da sua casa enquanto ela brincava, criança. Cresceu junto aos cinco irmãos - o que, para ela, “adiou” o seu entendimento do que era machismo, já que não sentia diferenças no tratamento que todos eles recebiam da família.

A mãe, pianista, era quem escrevia projetos musicais para editais. Junto ao marido, fundou o Festival Virtuosi, em 1996, voltado para atrações de música clássica. Crescer em um meio musical fez com que Ana desenvolvesse uma habilidade espontânea para lidar melhor com produção e tornar o backstage dos shows que produz em um ambiente mais familiar possível. “Nunca vou esquecer quando mamãe botou comida na boca dos meninos do [grupo] Hurtmold”, relembra aos risos. “Quando criança, eu passava muito tempo no backstage, assistindo aos shows dos meus pai. Então acabou se tornando um ambiente bem familiar para mim. E é assim que eu gosto que os músicos se sintam. Por isso sempre tem criança nos bastidores, sejam minhas duas filhas ou até mesmo os filhos do pessoal que vem tocar”, comenta.

Passou dez anos da sua vida morando em Boston (EUA). “Fomos morar lá por causa de mamãe”, explica. “Ela ganhou uma bolsa de estudos e a gente foi. Engraçado que essas situações me inspiraram bastante: uma mulher, pianista, com seis filhos para cuidar e sempre escrevendo projetos, tocando, inscrevendo coisas em editais. Ela sempre foi uma guerreira”, complementa Ana. Quando voltou ao Brasil, foi estudar Jornalismo, mas abandonou o curso no terceiro ano quando surgiu uma turnê da banda britânica Teenage FanClub. Acabada a turnê, Jornalismo não fazia mais sentido para a vida de Ana Garcia. Foi naquele momento que ela teve certeza que iria seguir os passos musicais dos seus parentes.

No período dos EUA, durante sua adolescência na década de 1990, Ana conta que cresceu ouvindo muita música de rádio. E, consequentemente, adquiria vários CDs que sequer chegavam ao Brasil por causa da dificuldade da indústria musical atingir outros países com a mesma intensidade. Sonic Youth, Teenage FanClub e Pixies, por exemplo, faziam parte do seu acervo. Quando voltou às terras brasileiras, Ana foi chamada para participar do programa de rádio Coquetel Molotov, justamente por causa do seu conhecimento que ia além do que a cena musical brasileira permitia. Foi, então, participando deste projeto que ela começou a entender que existia uma cena de música independente crescendo e que ela poderia investir neste ramo.

Desde sua fundação, o No Ar Coquetel Molotov possui uma equipe de organização formada majoritariamente por mulheres. Segundo Ana, a única equipe predominantemente masculina - e que ela pretende modificar na edição deste ano - é a técnica (de som, luz, roadie, etc). Essa “força feminina” nos bastidores do festival fazia com que ela achasse que o Coquetel estivesse sempre à frente de outros eventos, apoiando e incentivando a participação de mulheres. “Só que um dia, creio que uns três ou quatro anos atrás, eu fui analisar a programação do Molotov e percebi que apenas 20% dela eram formados por artistas mulheres. Então pensei: preciso rever isso!”. A resposta veio aos poucos e muito forte na última edição, que contou com a participação de três atrações femininas no palco principal, além de outras mulheres em toda a programação.

Cartaz
da segunda edição 
do festival 
No Ar: Coquetel Molotov, 
 2005 
Clique para ampliar

Outra dificuldade da produtora do Molotov foi a conquista dos patrocínios para apoiar o festival. Várias vezes foi recusada por editais públicos, em relação a outros projetos, enquanto festivais organizados por homens sempre ganhavam apoio. “Será que os produtores homens sabem negociar melhor do que eu?”, sempre se questionava. Mas rebateu: atualmente, o Coquetel Molotov possui diversas iniciativas privadas em toda edição. Questionada se isso, na sua opinião, pode ser considerada uma ação machista que atrapalha seu trabalho e de outras produtoras musicais,  ela diz que não tem uma opinião concreta formada. “Até que ponto a gente consegue analisar se isso foi determinado por ser mulher ou por ser homem?”, questiona. Para ela, é preciso analisar as situações para ter certeza se houve machismo ou se foi apenas questão de merecimento (ou falta dele). “Eu prefiro acreditar na segunda opção. Talvez eu seja ingênua, mas, na maioria das vezes, tento sempre levar em consideração que as pessoas têm um lado bom”, comenta.

Ana Garcia é múltipla. Além da produção do Coquetel, produz e assessora o festival Virtuosi e faz a curadoria e produção do projeto Ouvindo e Fazendo Música, do Museu do Estado de Pernambuco, além de ser empresária do cantor Thiago Petit. “Eu estou sempre envolvida com alguma produção diferente. Às vezes fecho shows para certas bandas, faço um projeto especial. Gosto de me manter ocupada”, explica.

 A VIDA DELA 
 FOI SALVA 
 PELO 
 ROCK ’N’ ROLL 
(Rock & Roll,
The Velvet Underground)​

Muito do que levou Ana ao seu conhecimento sobre música e ao trabalho de produtora cultural, hoje sua maior ocupação, pode ser enxergado através do que ela viveu nas três ou quatro cidades onde morou.

Quando começou a participar do programa de rádio do Coquetel Molotov, surgido no Recife em 2001, já pesquisava a música obscura dos anos 1960. Ela lembra que, além das referências que ela levava, os outros apresentadores da rádio já tocavam bandas da cena independente, a exemplo de Bidê ou Balde. Mas foi somente em São Paulo, assistindo a uma entrevista da MTV com um número de selos independentes da região, que ela conseguiu avistar de vez o mundo que era a cena independente do Brasil na época. “Ah, então isso existe!”, pensou. E então ela foi atrás dos selos, continuou a frequentar os shows e passou a conhecer as bandas e produtores envolvidos naquilo. “Eu acabei sentindo que eu tava fazendo parte daquilo de alguma forma por estar presente, sabe?”.

Ainda em São Paulo, conheceu Eduardo Ramos, produtor responsável pelo selo Slag - “um cara que foi muito legal e que me incentivava muito”. Como resposta aos impulsos que causava a cidade e aos seus antigos desejos pessoais, surgiu o site do Coquetel Molotov - uma forma de continuar conectada, ainda através da criação, aos parceiros que deixou em Recife. Em 2001, quando convidaram Ana para participar da empreita, o grupo - que também chegou a se chamar de coletivo - já era formado por quatro pessoas da mesma geração, todas igualmente interessadas nas bandas que surgiam no Recife e fora dele, logo depois que passou o tempo-furacão do manguebeat. Somado esse interesse coletivo às experiências de Ana fora do Recife, surgiram o festival No Ar Coquetel Molotov e também uma revista que divulgava os artistas da cena, consequência do lançamento de cerca de 16 fanzines que o próprio grupo organizou.

 Terceira edição
 da revista
 Coquetel Molotov.
 Na capa, 
 a paulista
 Cibelle.
Clique para ampliar

Hoje, Ana e o colega Jamerson Lima são os únicos remanescentes da “formação original” do Coquetel. O festival é reconhecido como um showcase do que acontece nas áreas mais aclamadas e nos segmentos que ainda nascem na cena independente nacional e pernambucana. Sempre com um gosto do que aparece fora do Brasil. Grupos e artistas solo do Rock, Pop, Hip Hop e do Punk passam naturalmente pela programação dos palcos do festival em Recife, Belo Horizonte e Salvador. Também natural é a forma como o público lida com a diferente estética de cada movimento. Coincidência ou não, essa naturalidade lembra o cenário da vida musical de Ana em Boston, lugar onde ela conseguiu os CDs que chamaram a atenção dos colegas a levaram a entrar para o Coquetel Molotov. “Lá tocava de tudo. Meus amigos eram muito fãs de Nirvana, Pixies, etc… E eu era muito de Rap. Eu escutava muito Wu-Tang Clan… Mas a gente se misturava, sabe, era normal a galera do Rap, do Rock, estarem andando juntos e indo pra festas diferentes. Lá rola muito mainstream, mas também rolam as bandas independentes, misturado”, lembra.

 EU VOU 

 LUTAR, 

 EU VOU 

 SUBIR 

 EU VOU 

 GANHAR 

 E CONSEGUIR 

("Sucesso, aqui vou eu", Rita Lee)

A razão que fez a pernambucana decidir por mais profissionais mulheres na técnica dos palcos esse ano é a noção de representatividade. Ela justifica: “Quando se tem, na linha de frente, várias mulheres fazendo um papel que normalmente seria feito por homens, seja na direção do festival, na produção, na logística ou na parte técnica, você vai estar inspirando outras mulheres a estarem também fazendo produção, a estarem tocando, controlando o som…”.

 

Dentro de casa, a mãe Ana Lúcia Altino a inspirou a entrar no mundo da produção de eventos; mas inspirou também a se permitir não ceder à ideia costumeira do que é ser mãe e esposa. “Mamãe, querendo ou não, é quem aguenta o trampo. É ela quem sempre trabalhou, sempre paga as contas, é a pessoa que está escrevendo os projetos… Enquanto papai era mais o artista. Ele não sabe escrever um projeto”. Crescer com uma pianista com certeza ajudou Ana a não duvidar que uma mulher é capaz de total desenvoltura na arte, ao contrário do que outros, levados por uma formulação misógina do que é ser mulher, podem pensar ao ver uma moça atrás de um instrumento. Mais do que isso, ter sido criada por essa pianista a ajudou a perceber que é preciso levar as questões do direito da mulher ao dia-a-dia e não esquecê-las nas afirmações que se fazem no palco.

Afinal de contas, o machismo “é um lance que tá dentro. E por mais que a gente seja mulher e também esteja nessa luta, tem coisas que são maiores e que a gente ainda precisa aprender a tirar de dentro de si.” Ana comenta esse fato enquanto conta da experiência do seu irmão na Dinamarca, onde os pais costumam estar mais envolvidos na criação e no cuidado dos filhos e têm um papel de fato relevante nesse processo - coisa que deveria ser normal mas soa como novidade. “Então lá é muito comum que esse papel seja bem dividido entre os pais. De modo até que quando o meu irmão está aqui no Brasil com os filhos, todo mundo estranha. “Oxente, por que a mulher dele está ali sentada e ele está ali trocando a fralda?”, sabe? Todo mundo estranha. A gente inclusive. Sem querer. É tão cultural.”

 NÃO APENAS 

 UM DOS SEUS BRINQUEDOS 

("Queens of Noise", The Runaways)

 “É que nem quando a gente ia para a boate e era normal as pessoas puxarem seu cabelo. Eu nunca vi uma menina brigar de verdade com um homem por causa disso. Meu irmão, não tinha um lugar que a gente fosse aqui no Recife onde, na entrada, não tivesse uma fileira de homens bebendo cerveja e as meninas passando e a galera puxando o cabelo. Isso era normal. Quem pegou isso foi uma geração mais velha que eu. Mas como eu andava com minhas primas, que eram mais velhas, consegui acompanhar. Isso era muito comum e ninguém reclamava. Porque já tava meio que embutido… É foda. Eu demorei a sair desse estado de anestesia”.    

Com 
Thiago Petit 
nos bastidores 
do Coquetel Molotov
2012 

Cresceu também o impacto do feminismo nas músicas. “Quase todas as artistas hoje têm um discurso feminista bem formado”, segundo Ana. “Mas tem outras áreas que estão mais debilitadas, como é com a música eletrônica. Você não vê DJs mulheres. Tem muito poucas. Acho que no Metal também. É uma área onde não houve nenhum tipo de empoderamento das mulheres metaleiras, tá ligado? Eu imagino que deve ter crescido as mulheres no metal, mas não é uma coisa assim tão… na sua cara, né?”, pondera.

Agora habituada a esse tipo de discussão e consciente da carência de pessoas como ela na indústria, Ana tem ainda uma predileção na hora de formar uma programação ou fechar um contrato. Influência do universo erudito dos pais ou não, a produtora defende a ideia de “boa música”. “Eu acho que a boa arte tem que existir. Se ela for homem ou mulher, não interessa, é a boa arte. Mas eu sei que, pensando em música boa e pensando em mulheres, é possível juntar os dois. Só não acho que a  presença da mulher pode sobrepor a necessidade do que é bom, entende? E aí está o desafio de ser um crítico ou curador, programador.” Boa ou má, a arte ainda não conseguiu acabar com a discrepância que aparece entre o número de oportunidades que existem para homens e mulheres. Pelo menos não até agora e não por si só. Em 2017, ano em que o festival de música pernambucano Abril pro Rock trouxe apenas uma ou duas atrações encabeçadas por mulheres, dentre 18 atrações no total, e o Lollapalooza Brasil contou com a presença de apenas 10 mulheres em uma programação composta por 104 artistas, é de se pensar que ainda esteja a cargo de homens intervir ou determinar o que passa a ser arte boa ou ruim.

 A carreira de Ana Garcia não chega a ser a história de uma dramática reviravolta contra a violência machista na sua própria vida. Há outras pessoas que sofreram mais com esse tipo de violência. Talvez, historicamente, sua carreira seja uma virada nos conceitos que corroboram a violência estrutural que separa qualquer mulher de um ofício tradicionalmente ocupado por homens. Ana teve acesso farto a educação, saúde e cultura durante toda sua vida. Podemos dizer que pessoas como ela possuem mais chances de ter apoio emocional de amigos e família. De qualquer forma, ela está aí para que se enxergue o fato de que nem o conforto de pertencer à classe média exclui o desconforto de ser mulher num contexto social que prega a inferioridade desse gênero e a preterição dos seus diretos, das suas vontades. Está aí também para mostrar que o trabalho dessas mulheres, quando suportado por uma estrutura básica de apoio, pode dar bom resultado e ir bem mais longe do que tentam pregar.

Na semana do nosso encontro com Ana em seu apartamento, quase à beira-mar da praia de Boa Viagem, provavelmente a quadras de distância, a fisioterapeuta Mirella Sena foi estuprada e assassinada, dentro de sua casa, pelo seu vizinho.

 FEMINICÍDIO

O comerciante Edvan Luiz da Silva, 32 anos, foi indiciado pelo estupro e homicídio quadruplamente qualificado - por uso de meio cruel, ocultação de estupro, impossibilidade de defesa da vítima e feminicídio - da fisioterapeuta Mirella Sena, 28, sua vizinha em um condomínio localizado no bairro de Boa Viagem, zona sul do Recife. Sucedido em abril de 2017, o crime teve repercussão nacional e levantou um forte debate sobre machismo e feminicídio nas redes sociais e em manifestações pelas ruas do Recife. “Machismo matou minha filha”, disse a mãe de Mirella em um dos protestos nas ruas de Boa Viagem, como noticiado em nove de abril de 2017 pelo portal JC Online.

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