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VOCIFERAÇÃoCONTRA O MACHISMo

NO METAL

por ANA CARLA SANTIAGO

Vociferar: berrar, clamar; proferir algo aos gritos ou com voz forte e clamorosa;

reclamar com veemência ou cólera de algo ou alguém

“Meu nome é Marcella Tiné. Tenho 29 anos e trabalho como publicitária. Também estudo Medicina Veterinária atualmente. Toco bateria desde os 13 anos, mais ou menos, e tive vários projetos musicais até fundar a minha primeira banda profissional, a Vocífera. Meus pais são músicos. Minha mãe canta e meu pai é instrumentista, toca violão, guitarra, também compõe. Ele tem uma carreira de, mais ou menos, 30 anos. Aí acho que vocês perceberam que meu interesse por música é desde o berço, é algo que veio por influência dos meus pais para mim e para meu irmão, que também é músico.

 

Lembro que tive o primeiro contato com instrumentos musicais quando tinha oito anos de idade, na época em que meu pai trabalhava no setor de música da Universidade Católica de Pernambuco. Dessa fase, herdei uma ótima percepção musical e uma grande noção de ritmo, além de “arranhar” alguns instrumentos percussivos como Atabaque, Bongô e Zabumba. Para aprender bateria, não foi diferente: ia vendo pessoas tocando e imitando em casa, já que na minha época não existia Youtube e tutoriais para facilitar.”

“A GENTE
COMO MÚSICO NUNCA ACHA
QUE APRENDEU
O SUFICIENTE”

“O meu maior período de aprendizado musical foi quando montei minha primeira banda de rock com amigos, com uns 17 anos. Era o tempo que eu tinha para treinar o que eu escutava. Nem todo mundo sabia tocar, mas a gente desenrolava, ia para estúdios ensaiar… aprendemos muita coisa juntos. A gente como músico nunca acha que aprendeu o suficiente, sempre tem aquela coisa de achar que pode mais. Então, até hoje não considero que tenho aprendido tudo, por exemplo.

 

Nunca me senti diretamente desencorajada a aprender bateria. As pessoas tinham - ainda têm - um sentimento de curiosidade comigo, porque não havia mulheres tocando bateria nessa fase. Também acho que essa curiosidade poderia ser muito para julgar, saber se eu realmente tocava bem. Mas, ainda bem, nunca tive negativismo para o meu lado por ser baterista. Porém lembro que, até hoje, meu pai brinca comigo falando que preferia que eu tivesse aprendido a tocar flauta a bateria.

A primeira banda que participei tinha um estilo mais Pop/Rock. Um ritmo considerado mais fácil, já que todos os integrantes estavam aprendendo a tocar juntos. Logo depois, eu já estava ouvindo muito Hardcore e Punk [Rock].... aí montei outra banda nesses estilos. Passei, então, a me interessar muito por Heavy Metal, comecei a praticar músicas desse gênero, que é mais rápido, e foi aí que surgiu o protótipo da Vocífera. Era um outro nome antes quando a gente estava buscando nossa identidade, tentando entender o que fazer… todas as integrantes gostavam de Heavy Metal, Thrash [Metal], Death [Metal], mas ninguém nunca tinha tocado esses gêneros de fato. Quando encontramos nossa vocalista é que decidimos seguir um caminho mais profissional e seguir em frente com a banda. A gente já tinha algumas músicas prontas e aí, em 2011, nasceu a Vocífera.”

 ANTES DE EU ESTAR

EM UMA BANDA

DE  ROCK’N’ROLL 

EU NÃO CONSEGUIA VER A HORA DO DIA 

(Don’t Abuse Me, Joan Jett)

“O primeiro contato que eu tive com o Heavy Metal eu tinha oito, nove anos, e não entendia o que era aquilo. Na época, existiam locadoras de vídeo, locadora de CDs também. Nessa idade eu já curtia [bandas estadunidenses] Guns n’ Roses, Bon Jovi… uns “rockzinhos”. Na locadora, tinha um CD da [banda britânica] Iron Maiden, o Fear Of the Dark. A capa é um desenho de um demônio azul, quando eu vi, pensei: “nossa, que diferente, vou alugar para ver o que é”. Isso com oito anos, imagina! (risos). Ouvi e aquele som soou muito estranho para mim, mas eu continuei insistindo e ouvindo aquilo. Além disso, também tinham revistas sobre música que vinham com brindes, com discos de bandas novas e que eu comprava quando adolescente… foi dessa forma que comecei a me envolver com o Heavy Metal. E, um tempo depois, quando conheci amigos na faculdade que também gostavam desse estilo, pude trocar mais ideias sobre bandas.

Na Vocífera, nós, as cinco integrantes [eu, Lidiane, Erika, Ângela, a antiga vocalista, e Amanda], compomos a maioria das músicas. Cada uma tinha uma vertente musical preferida: eu gosto muito de ouvir Thrash Metal, Erika e Lidiane, as guitarristas, também gostavam muito de Thrash, mas também de Heavy Metal e Punk [Rock]… Ângela era muito do Black Metal… e Amanda vinha muito do Punk [Rock] também. Acho que a mistura desses gêneros deu essa sonoridade única da Vocífera. Trouxe um certo peso, mas, ao mesmo tempo, uma harmonia dentro da nossa música. Soa diferente de outras.

 

Inclusive, em relação às letras, foi proposital nossa escolha de sair desse meio comum do Metal de falar sobre coisas sobrenaturais, morte, guerra… Quisemos sair dessa temática e falar sobre situações mais humanas. Tanto é que nosso CD se chama Evil Thoughts, ou seja, Pensamentos Malignos. Todas as letras têm esse universo de coisas malignas. A gente fala sobre autodestruição, automutilação, suicídio, abuso de drogas, corrupção, sadismo, vingança… não só sobre um tom político, mas com um tom muito obscuro mesmo, sobre o ser humano em si.

Primeiro, a gente lançou um EP com duas canções. Foi muito bem recebido. Com essa demo, conseguimos tocar em festivais renomados, como Abril Pro Rock (APR) e o Animal Fest. Nós tocamos em muitos lugares nessa época, em vários estados: Alagoas, Paraíba, Bahia, Natal.  Os anos de 2012 e 2013 foram muito bons para o grupo.

Engraçado que no nosso primeiro show, um dos curadores do Abril [Pro Rock] estava lá nos assistindo. Ele curtiu para caramba e alguns meses depois, Paulo André [produtor do APR] veio falar comigo, perguntou se a gente tinha interesse em tocar lá - e é claro que a gente tinha interesse! (risos). O Abril Pro Rock foi nosso quinto show, estávamos super verde ainda de palco… mas ficamos muito felizes com esse reconhecimento tão rápido. E claro que rolaram várias críticas, né? Pessoas que disseram, por exemplo, que não sabiam “porque colocaram essas meninas para tocar se tem outras bandas antigas que mereciam estar no lugar delas”.  Mas quem escolhe quem vai tocar no festival são os curadores e eles escolheram a gente, ponto final. Não é?

Decidimos, então, financiar nosso primeiro disco de forma independente. A gente guardou o cachê do nosso show do Abril [Pro Rock] com todo nosso carinho e esse dinheiro serviu para uma parte do CD. O resto foi [dinheiro] do nosso bolso mesmo. É complicado, porque banda independente, principalmente de Metal, tem muita dificuldade de encontrar um produtor que lhes lance. Principalmente no Nordeste, em São Paulo isso talvez até role… aqui [no Nordeste] tem bandas com 25 anos de carreira, tipo o Decomposed God [banda recifense de Heavy Metal], que não consegue contrato com nenhuma gravadora.

 

Gravamos boa parte do disco em um home studio, o que baixou muito os custos dele. Mandamos esse CD e o release da gente para várias pessoas, correndo atrás de satanás e o mundo para tentar conseguir um selo que o lançasse (risos). Foi quase um ano tentando algum selo, mas nós pegamos uma fase péssima da economia brasileira, que foi o começo do ano passado… quando o Brasil entrou em crise de fato e vários selos estavam fechando. Inclusive, acho que esse foi um dos fatores para que os convites para shows diminuíssem. Lançamos o disco, as críticas e resenhas foram ótimas, mas não rolou tanto convite para tocar. Esperávamos mais nesse sentido, de retorno de show, porém infelizmente não aconteceu.

Voltando ao nosso primeiro CD, recebemos tantos “não” que decidimos botar o disco na internet. Colocamos no BandCamp, um site que tem o modo “pague quanto quiser”. Tem muitos downloads free, mas alguns [downloads] o pessoal paga. Engraçado que os downloads pagos são de gente de fora do Brasil. Estados Unidos, Canadá, Índia, Rússia.... brasileiro não tem costume de comprar música na internet, né? Isso é horrível. É uma coisa tão comum em outros países…

 

Até que um dia, um cara da Rússia, dono do selo Narcoleptica Prod., entrou em contato com a gente pela nossa página [do Facebook] pedindo para lançar nosso disco. Depois de um ano! E um selo russo! Imagina. Inclusive, está tudo pronto e já está rolando o disco físico lá na Rússia. Só falta ele chegar aqui nas nossas mãos (risos).

 

Foi massa e bem espontâneo esse processo, porque nossas músicas todas foram gravadas em inglês. Escolhemos o inglês justamente porque é uma língua que atinge mais pessoas. Os maiores curtidores da nossa página são gente de outros países… então, como se comunicar com essa galera se não for pelo inglês, né? Se nossas canções fossem em português, acho que não teria uma abrangência tão grande de divulgação.

A maioria da cena do Metal é composta por homens ainda. O grande público é masculino, a gente sabe disso. E é muito machista. Somos uma ‘exceção ao grupinho’. Várias das críticas que recebemos foram feitas por homens, insinuando que não tínhamos capacidade ou merecimento para tocar em festivais grandes e a justificativa era o pouco tempo de carreira… ou que a gente estava aparecendo apenas por ser mulher. Rolavam até comentários mais chulos. A Vocífera foi a primeira e creio que a última banda de Metal formada só por mulheres aqui em Pernambuco. Até agora não surgiu nenhuma e eu queria muito que aparecessem mais e mais bandas só com mulheres. É muito importante essa representatividade.”

“NÃO TOCO COMO
UM HOMEM,
EU TOCO COMO
UMA BATERISTA!”

"O meio do Metal é extremamente machista. Já escutamos e lemos vários comentários de “só estão aparecendo porque são mulheres” até insinuar que alguém está tendo caso amoroso com algum homem da cena. Também há aquele machismo velado, de perguntarem se eu me canso muito tocando ou receber comentários feito “você toca igual a um homem”. Já escutei vários desses e eu sempre faço questão de dizer: isso para mim não é elogio. Se quiser me elogiar, diga que eu sou uma boa baterista! Tocar igual a um homem por quê? São só os homens que tocam bem? Não toco igual a um homem. Eu toco como uma baterista!

Outra coisa que me incomoda muito é quando a mídia se refere a uma banda com integrantes femininas como “banda formada por mulheres”. É como se a gente estivesse sendo reduzida ao nosso gênero. Estão esquecendo tudo que nós fazemos de música e lembrando apenas que somos mulheres. Isso não é ruim, mas a Vocífera, por exemplo, é uma banda de metal e é assim que a gente gosta que se refiram a nós. 

Eu acho que há uma certa “preciosidade” da mídia em destacar isso de “banda feminina” com o objetivo de chamar atenção mesmo. Tem muita banda por aí que usa esse termo como artifício para se destacar. Mas a gente [Vocífera] não precisa disso, queremos ser conhecidas pelo som que fazemos. Se nós formos reconhecidas como a melhor banda, que sejamos a melhor banda entre todas e não “a melhor banda formada por mulheres”.

Já nos perguntaram várias vezes coisas do tipo: “vocês brigam muito?”; “como é quando vocês estão de TPM?”.  E eu sempre respondi: “É igual a você com seus amigos”. Já acabo a conversa daí (risos). É complicado. Nós passamos pelas mesmas situações que outros grupos passam. Não é porque a gente é mulher que é diferente. E eu falo isso com propriedade, pois já participei de outras bandas formadas só por homens. É igual. Aí eu sempre respondo esse tipo de pergunta desse jeito, às vezes saio até por grossa, porque é um saco…

 

Tem muita gente, por exemplo, que escuta o som e acha que são caras [tocando]. Quando vai ver uma foto da gente ficam: “Nossa! São mulheres!” ou “Por que a vocalista canta parecendo um homem?”. Não, ela não canta parecendo um homem. É uma técnica vocal, do estilo musical, que faz com que a voz fique grave. É [a técnica] “Gutural”, é o que o Metal pede. O estilo é dessa forma. 

Talvez isso [preconceito] esteja diminuindo, porque as discussões sobre gênero e política estão crescendo dentro da cena. Mas ainda tem muito o que mudar. Tanta gente que prega o discurso de que não se deve debater sobre essas coisas, só curtir o som das bandas. Mas Metal é política! Metal é posicionamento! Não se pode deixar isso para lá. Mas a cena está se reformulando, mesmo sendo a ‘passos de tartaruga’, eu acredito.”

 UMA GAROTA PODE FAZER

O QUE ELA QUISER 

 E É ISSO 

O QUE EU VOU FAZER 

(Bad Reputation, Joan Jett)

“Neste ano, a Vocífera deu uma pausa. Por motivos pessoais e, infelizmente, financeiros. Somos uma banda independente e arcamos com 100% dos custos. Algumas integrantes estavam desempregadas e também estávamos ficando sem tempo. A Vocífera é uma banda que exige muita dedicação e no momento não estava rolando. Estávamos todas ocupadas com coisas nossas mesmo. Então, resolvemos dar um tempo, porque não fazemos nada pela metade. Não dá para ficar fazendo coisas “meia-boca”, entendeu? Ou é ou não é.

Por sorte, nunca passei pelo perrengue de ser “discriminada” por tocar bateria. Eu sempre encontrei pessoas que ficam admiradas, na verdade, de saber que existem mulheres que tocam esse instrumento (risos). E acham massa. Mas creio que isso seja algo restrito ao meu círculo social… Eu tenho amigas que vêm de famílias extremamente conservadoras e passaram por várias situações dessas. Da mãe não deixar elas saírem de casa e elas terem que tocar escondido até comprarem guitarras e esconder dentro de casa, porque se os pais vissem iam surtar. Eu nunca passei por isso, pois venho de uma família mais aberta, posso dizer que sou até privilegiada nessa questão. Mas, infelizmente, rola muito de meninas serem julgadas e terem que “se esconder” da própria família nesse sentido.

Eu ainda estou meio que “curtindo” o luto da Vocífera agora. Tentando me adaptar a essa nova realidade. Por enquanto, trabalho, estudo e criei uma nova banda com meu irmão, chamada Maracutaia Tropical (risos). Ele toca violão, canta e é compositor também. E eu também toco outros instrumentos: zabumba, triângulo, atabaque, conga. O estilo é mais na linha da psicodelia brasileira, tipo Mutantes, Ave Sangria...

O que me deixa muito feliz é saber que a banda influenciou e incentivou muitas garotas a fazerem algum projeto musical ou a aprender a tocar algum instrumento mesmo. A gente já recebeu até um vídeo de uma menina tocando o baixo de uma de nossas músicas dizendo que começou a tocar ouvindo nosso som. É uma realização saber que meninas, principalmente, estão entrando nessa, porque estão vendo que é possível mulheres realizarem um trabalho musical. Tipo, “as meninas estão fazendo, vou fazer também”. Além disso, nas próprias formações da Vocífera, algumas das integrantes nunca tinha tocado antes, nunca tinham estado em um grupo de Metal. Nós meio que descobrimos elas e colocamos dentro. Tudo isso para nós é… formidável.”

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