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SUBVERsãO

Dobrada

por GUSTAVO HENRIQUE

Mulheres unidas na luta

 Chega de disputa

Vítimas da mesma opressão

Se liberta, me escuta

Porque donas de si serão sempre chamadas de puta

Sempre vão lhe condenar

Seja de saia curta ou burca

(Subversão Feminina)

Lady Laay não é um mistério. Não é difícil perceber ou descobrir quem ela é. De perfil diferente da artista que toma tempo para deixar crescer uma sombra de desejo e especulação sobre a sua imagem, tudo o que se quer saber não sobre a pessoa, mas sobre a artista que é, está na sua atitude e na sua performance. Nelas, o que se vê, de cara, é a ideia ou a sensação de urgência. Sem dúvidas, sem atropelamentos, sem hesitação, sem medo, mas urgência. Às vezes agressiva, às vezes não.

Cresceu nas ruas, casas e escolas de Vila Dois Carneiros, localidade que se divide entre a cidade de Jaboatão dos Guararapes e do bairro do Ibura, no Recife. “Periferia, né?”, como diria. Lá, acumulou um legado de indignações - deixado ali pela classe secular de senhores de engenhos, donos de fábricas, usinas, jornais, construtoras e uma infinidade de outros donos - que se tornariam parte significante das pautas em que toca com a sua música.

Do outro lado da periferia, o lado que parte da violência do dia-a-dia e também do puro vislumbre de estar no mundo para criar coisa boa, encontrou o hip hop. Inicialmente através do break dance. Depois, o graffiti. Depois, o rap, onde se encontrou de vez como artista.

O primeiro rap que ouviu foi de Eduardo, do grupo Facção Central. A forma “nua e crua”, nas palavras dela, como o paulistano narra a realidade da periferia deixaria uma marca forte na sua poesia.

Violência doméstica, abandono paterno, violência policial, jornada dupla de trabalho, genocídio da juventude negra, o desamparo que assomou as mães de bebês com microcefalia no auge da contaminação pelo mosquito da dengue, o descaso dos homens da cena hip hop de Pernambuco com o trabalho dela e das suas colegas, objetificação da mulher. É difícil que as letras que compõe falem de machismo e de feminismo separadamente. Provavelmente porque ela não os vive separadamente.

Nascida Elaine Silva, sempre gostou de História, Português e de escrever poesia. Formou-se em Ciências da Computação, inicialmente por influência do pai, técnico em informática. Fundou um grupo de hip hop, o Poder Feminino Crew (PFC). Quando as atividades do grupo começaram a esfriar, lançou sua carreira solo. “Subversão Feminina”, “Quantos Inocentes Ainda Vão Sangrar?”, “DISSrespeito À Mulher”, “Xapaquenti” com Bella Z, MC Xina e mais três, “Não Se Perca” com a paulista Jô Maloupas. Ainda este ano, lança “Audaciosa”, seu primeiro EP.

Das agressões sofridas pelos colegas de trabalho na música, da colaboração com as colegas do PFC, das conquistas pessoais e profissionais no trabalho com Tecnologia da Informação, da capacidade de mudar a opinião das pessoas, criou sua ética, que preza por eficiência e se demora na ideia de transformação do meio onde se vive. Lady Laay não parece encarar sua luta com pesar. Sem arrogância, sem medo de desagradar, foca no que quer dizer.

Tudo o que conta se enxerga facilmente nas suas músicas. “Essas coisas que dizem que mulher não era para estar, eu sempre meti o bedelho lá”, ela me disse, na sua dicção apressada. Abaixo, a nossa conversa.

 S: Sua família 
 é do Recife? 
 Você cresceu 
 por aqui?

Nasci e cresci em Dois Carneiros, que tem uma parte em Jaboatão [dos Guararapes], outra parte no Recife. Periferia, né? Vila Dois Carneiros. Minha mãe já morou em vários lugares, mas eu sempre morei lá. Agora meus pais estão morando em Brasília Teimosa, aí eu fico um pouquinho lá e um pouquinho em Olinda também.

 S: Como começou
o interesse
por música?

Desde criança mesmo. Pré-adolescente, eu já escrevia, gostava de escrever. Gostava de português, de escrever poesia. E eu gostava de outros gêneros musicais, mas… O gênero musical, a música para mim era só a música, né, entretenimento. Quando eu conheci o hip hop, foi a identificação de achar um gênero que era e que dizia tudo que eu sentia, que eu pensava… Porque eu já tinha… Mesmo nova, eu gostava de História, aquelas coisas da revolução, do povo, sabe?

60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais 

já sofreram violência policial 

A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras 

Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros 

A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo 

Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente 

(Capítulo 4, Versículo 3; Racionais MCs)

 S: Você já
 tinha esse  interesse
 por justiça social.

Exatamente. Aí quando eu conheci o rap, eu gostei logo do primeiro que eu ouvi. Fui pesquisar o hip hop mais a fundo e vi que tinha toda uma cultura por trás, outros elementos. Aí eu comecei primeiro no break [dance], porque eu achava que minha voz não era legal. Tinha aquela pilha. Depois comecei a grafitar, fiquei grafitando e dançando break. Em 2014, comecei no rap. 

Eles falam de paz, mas no seu íntimo 
armam uma emboscada 
Eles falam de paz, quando não há 

 
Mas eu posso sentir os perigos da guerra não declarada 
É uma guerra fria, disputa violenta, sanguinária 
Sabe, porém 
Vai de mal a pior, vivemos nos últimos dias 

 

(Eles Falam de Paz, Visão de Rua)

S: Quando sentiu que poderia investir no hip hop profissionalmente?

O break e o graffiti eu via como hobby, no início. Eu formei um grupo chamado Poder Feminino Crew (PFC), porque eu sentia dificuldade no break. Os caras nunca botavam mulher no grupo, sabe?  Essas coisas. No graffiti também… Quando você ia dar um rolê para pintar com um cara, ele queria lhe ensinar como se você não soubesse de nada. Mas ensinar no intuito de… [diminuir] ou então com segundas intenções. Aí eu fui percebendo o quanto o hip hop era machista. Não só por isso, por várias outras coisas. De boicote [às mulheres], de só ter homem nos eventos… 

Nesse grupo que eu formei eram três elementos: dança, que era break e ragga, graffiti e rap. No início, outra menina cantava o rap, porque eu achava que não dava para mim. Como eu escrevia poesia desde sempre, eu fazia umas letras e ela interpretava. E ela compunha as próprias letras também. Depois, eu comecei fazendo back [vocal] dela, fazendo só as terceiras vozes. E então eu comecei a cantar. 
 
Quando foi no meio de 2016, eu decidi fazer carreira solo também. As meninas do grupo tinham outras obrigações, não podiam se dedicar tanto. E eu tinha mais aguçado isso de levar mesmo o rap como instrumento de luta e aí me dedicar mais, valendo.

S: Como sua família  recebeu essa atuação 
 no meio 
do hip hop? 

Quando eu comecei no break, meus pais disseram para eu escolher “ou família ou a dança” - se baseando no pensamento que eles tinham de que o hip hop era coisa de marginal. Mas se fosse um filho homem, eles não teriam tanto problema. Como meu irmão, que é bem mais novo que eu e desde cedo podia fazer várias coisas que eu não podia. Então, por ser uma cultura de rua, eles não queriam... por ver que a mulher era aquela coisa frágil. “A minha filha na rua, maloqueira?”. Minha mãe jogava fora meus caps… 

Só que eu vejo que o machismo que eu vivi em casa é diferente do da rua. O da rua é meio que maldade mesmo. O dos meus pais era no sentido de achar que eles estavam me protegendo. Achar que mulher era mais frágil. Não era aquela coisa tão maldosa. Então eu [pensei]... Juntando as mulheres é a forma da gente se fortalecer e se fazer presente, né? Tanto mostrar que a gente tem capacidade, que  é [o hip hop] uma cultura para a gente também, como que a rua também é um lugar para a gente. É onde a gente quiser nosso lugar.

S: E agora que já buscou essas ideologias, tem um pensamento por trás do que faz, você consegue conversar com seus pais sobre isso?

Sim, agora eles gostam. Eu até gravo uns vídeos e posto onde meu pai faz a rima [risos]. Agora eles ficam torcendo, apoiam. Na verdade, a sociedade ainda tem esse lado, sabe, de ver uma pessoa com a roupa mais folgada e dizer que é maloqueiro… Ainda tem esse pensamento. Só que quando eu apresentei a eles o que é a cultura, que tem um engajamento social por trás, aí eles entenderam e agora apoiam.

“A performance do hip hop mistura, em níveis sucessivos, gêneros que para a cultura ocidental seriam diferentes e separados (música, poesia, dança, pintura). O diferencial é a interpretação, a fusão de todos esses elementos, que faz dela uma forma artística que não seria equivalente à soma dos elementos separados. Para compreender a multidimensionalidade dessa performance, é necessário fazê-lo em seu contexto social. Neste caso, o marginal, cheio de problemas sociais, educacionais e de exclusão social. Este contexto social é o que dá sentido à performance.” Leia mais no texto de Adriana Borges para o portal Obvious.

LL: Consegui mudar a mente deles e de várias outras pessoas. No meu trabalho também... Eu trabalho em TI [Tecnologia da Informação], que também é outra área predominantemente ocupada por homens. Só tinha eu, antigamente, na empresa onde eu trabalho. Depois entrou outra [mulher]. Agora sou e mais duas numa empresa que tem mais de 20 caras. E sempre foi assim, até na faculdade de Ciências da Computação.

S: Como entrou
nessa carreira?

Meu pai era técnico em informática. Então desde cedo eu gostava de computação e tal. Eu também sempre tive aguçado isso de onde tinha menos mulheres, onde eles diziam que não era o nosso lugar, eu queria estar. Eu já cheguei a lutar taekwondo… jogava bola, sempre saía para jogar bola… Essas coisas que dizem mulher não era para estar, eu sempre meti o bedelho lá. Isso também fez eu me interessar pela área de computação, justamente por ter menos mulheres.

Do ramo da computação inteira, eu escolhi programação. Também foi bem difícil, não só por eu ser mulher, mas por eu ser periférica, não tinha grana… Aí eu tive que fazer FIES [Fundo de Financiamento Estudantil]. Não consegui [cursar] na Universidade [Federal] porque Ciências [da Computação] é muito concorrido. Aí como é que eu ia concorrer com pessoas que estudavam em colégio particular, né? Filhinhos de papai que podiam se dedicar totalmente ao estudo? E eu trabalho desde os 18 anos. Meu primeiro trabalho foi telemarketing. Sempre foi assim… Aí fiz FIES lá, batalhei e consegui. E não é um trabalho só para ter uma renda, é uma coisa que eu gosto tanto quanto o hip hop.

S: De onde veio o nome Lady Laay?

Meu apelido sempre foi Lai porque meu nome é Elaine. Aí eu escolhi Lay… Só que já tem uma Lay em São Paulo, aí quis botar o “Lady”. Tem várias MCs gringas que sempre tem o "lady" na frente do nome. Lady Leshurr... Para o meu alter ego - que na literatura é pseudônimo, no rap a gente chama de alter ego - eu escolhi “Audaciosa”, que vai ser o nome do EP que eu estou gravando. Isso porque as músicas vão ter sempre esse tom de enfrentamento mesmo. De falar com audácia o que as pessoas têm receio de falar.

Teve uma música que eu fiz… No rap tem um gênero chamado diss, que é de ataque. E tinha esse machismo que rola aqui [na cena do hip hop em Pernambuco]. Quando eu fiz, a gente tava reclamando mas não era um um enfrentamento direto. E aí os caras fizeram uma diss pro pessoal do sul dizendo que o Nordeste era muito invisibilizado. Só que esses mesmos caras invisibilizavam as mulheres do rap aqui. Então eu fiz uma música de ataque, inclusive denunciando agressão. Tem vários MCs agressores… Então [o EP] vai ser de enfrentamento direto do presidente até ao MC mais babaca. 

S: O portal R7 noticiou a manifestação de um grupo de artistas contra a falta de espaço para as mulheres num evento organizado por MCs pernambucanos em protesto à PEC 55/2016.
O texto diz que, depois do pronunciamentos das mulheres,
elas acabaram sendo ainda mais silenciadas.
Você acompanhou esse caso?

Foi disso que surgiu a diss que eu fiz. Já tinha todos esses episódios dos caras, não só nas letras deles, objetificarem [o corpo da mulher], boicotarem a gente nos eventos, tudo isso, né? Desrespeitar… A desculpa deles de não botar [artistas mulheres] em evento privado é que mulher não dá público. Eles dizem que é por causa da questão financeira. Isso realmente é um problema, porque às vezes as pessoas nem dão play no som, por subestimar. Então realmente pouca gente cola nos eventos, né? Mas não acho que isso seja justificativa. Como é que as pessoas vão gostar da gente se a gente não se apresenta? 

Aí esse era um evento gratuito, em prol de uma causa, contra a PEC 55, ou seja, essa justificativa não colava. Mesmo assim não botaram nenhuma mulher. Então a gente puxou, “Como é que vão botar ‘hip hop contra a PEC’”? ‘Hip hop’! E não ter mulher lá? Se quer falar em hip hop, então vocês botam “homens do hip hop contra a PEC”. Mas se é hip hop [no geral], tinha que estar a gente lá. Várias minas que não são do hip hop mas são feministas também se mobilizaram contra. “Cadê as mulheres? A gente quer ouvir mulher também”. E aí eles comentaram lá [em uma rede social], “A gente não conhece nenhuma mulher no rap daqui”. Bem irônicos, como se a gente fosse insignificante. Dizendo que a gente não tinha espaço porque não tinha qualidade, que a gente tinha insegurança no palco… essas coisas escrachadas assim, sabe? E então as meninas foram em peso pro evento. Dentro da programação, tinha uma roda de diálogo. As meninas ocuparam a roda e “vamos conversar então, vamos confrontar eles”. Não confrontar de briga, mas “ó, essas suas atitudes estão erradas por isso, isso e isso”. Só que eles  não aguentaram ouvir. Eles simplesmente encerraram o evento, cortaram  o mic[rofone], não deixaram as meninas falar. Eles deram as costas, desligaram as coisas e foram embora. Então isso foi mais um ato de silenciamento. Cadê o diálogo?

E ainda disseram que a gente acabou com o evento deles. Aí veio na página do PFC o pai de um deles ameaçar a gente. Dizer que a gente era maloqueira, que a gente acabou com o evento do filho dele. Que se ele tivesse lá, ele botava a gente… Tipo, dando a entender que ele ia agredir a gente, ia botar a gente para fora a pulso.

Como é que você nunca ouviu falar 
Das netas das bruxas lendárias 
Que não conseguiram queimar na fornalha 
Só as mina afoita e desaforada 
Que bate de frente, insolente 
Sem pano pra nada 
Subestimadas, mas obstinadas 
Sem paciência pra macho piada! 

Paga de bom moço, 

mas já mandou a ex pro hospital, né? 
Ele bate que bate, que bate em mulher 
Bate que bate, que bate em mulher 
Achou que ia ter pano pra covarde, é? 

 

(DISSrespeito à Mulher)

S: Você já passou por alguma situação de agressão ou assédio com algum desses homens da cena hip hop?

Ah, assédio muito. Já rolou dos caras, tipo, dizerem que estavam fortalecendo a mulher porque era pela causa, né, e depois queria cobrar uma… que você ficasse com a pessoa a pulso, sabe? Assédio de xingar mesmo também. Vários de vaiar. Já jogaram coisa em uma menina durante o show dela. Uma artista chamada Issa Paz, que é de São Paulo, durante um show em Sergipe. 

E aqui também… Tinha uma menina que tocava comigo no PFC, Gabi. Durante uma performance, ela comentou que todo mundo estava do lado de fora bebendo e não pagava ingresso para entrar realmente no show só porque era mulher tocando. Se fosse um cara, eles iam entrar. Ela só falou isso. Aí um cara ouviu lá de fora, entrou e foi botar o dedo na cara dela. Interrompeu o show da gente e se não fosse o pessoal para segurar ele, ele tinha agredido ela. A justificativa dele é que estava bêbado, mas não [justifica]. A gente fez até uma nota de repúdio que teve bastante circulação.

 

 [Leia a nota na página do Poder Feminino Crew no Facebook.] 

O que eu vejo é vários MCs que agridem suas companheiras e que todo mundo sabe e passa pano, fica por isso mesmo, sabe? E quando a gente mobiliza, na hora, tem aquele “Não, vamo boicotar” mas depois, no final, todo mundo esquece. Dá em nada.

“A verdade é que os crimes contra as mulheres nem de longe recebem o mesmo repúdio que outros tipos de crimes, como o assalto, por exemplo. Nossa cultura nos ensina a não reagir quando ouvimos uma vizinha sendo espancada ou quando uma mulher é xingada e empurrada em um bar. A vida das mulheres pouco importa, pois as mulheres são tratadas como seres de segunda categoria, abusáveis, objetificáveis e exploráveis.” Leia mais no portal Revista Fórum.

S: Está acontecendo um movimento de valorização do trabalho das mulheres, no geral. Os benefícios desse movimento chegaram para as artistas da periferia ou está mais nas brancas e de classe média,
que têm um passo à frente, de certa forma?

Sim, visse!? Tá mais para elas. O que tu disse bateu com uma coisa. A gente [Poder Feminino Crew] foi chamada para tocar num evento da Secretaria da Mulher na Arena Pernambuco. Só que no cartaz desse evento falaram da gente como “as meninas do hip hop”. Nem citaram nosso nome… Enquanto citaram o nome de Nena Queiroga, Karina Buhr, várias mulheres brancas e renomadas. A gente até comentou lá, “As meninas do hip hop têm nome”. A gente ficou triste com isso e também com o tratamento diferente por parte da apresentadora e do pessoal do evento. Quando chegou Michelle Melo, o pessoal… [gesto indicando exaltação]. Enquanto que com a gente… Parecia que era só aquelas animadoras de plateia, sabe? 
 
Então eu sinto que falta recurso para que o hip hop seja enxergado como um movimento artístico tão culto quanto quanto MPB, quanto outros estilos. O brega tá conseguindo essa visibilidade. Tipo, o brega é marginalizado e ele é de periferia mas ele ainda tem um pouco mais de benefícios da mídia por ser entretenimento e porque dá audiência. Então eles têm exceções. Já a gente, nem isso. O hip hop está à margem da margem mesmo.

Esgotada, sobrecarregadas, vitimadas pela negligência 
Abandonadas, desamparadas, sem a devida assistência 
E a mãe do bebê que acabou de nascer com microcefalia 
Largada pelo marido, que da responsa fugia 

Transtornos de ansiedade, depressão, fobia 
são algumas das sequelas dessa epidemia
Trabalhar o dia inteiro, ainda cuidar sozinha da cria
Jornada tripla de trabalho sem o amparo que devia

S: Quando uma criança da periferia é abandonada pelo pai, ela é mais afetada por isso do que uma criança de classe média, de modo geral. Você chegou a ver isso acontecer?

Com certeza. Eu tenho uma música que fala sobre isso de abandono paterno. Por que é que abandono paterno pode e aborto não? Se o homem está abandonando uma filha ou um filho, é uma espécie de aborto. E para ele não dá em nada, como sempre. E aí a criança se torna mais propensa a ir para a marginalidade. 
Porque a mãe está sobrecarregada, a mãe tem que cuidar do filho mais novo, tem que trabalhar, tem mil e uma coisas para fazer. Às vezes ela tem que deixar seu filho para cuidar do filho da patroa, né? Ela acaba se ausentando…

Uma mulher negra e sobretudo da periferia sofre com o machismo mais ainda. Porque os caras que têm menos esclarecimento são propícios a cometer mais ainda. E as mulheres com classe social mais baixa, elas têm jornada de trabalho maior. Então a criança não tem a figura do pai, cresce revoltada no seu íntimo. Não tem um referencial, sabe? Não tem atenção, porque a mãe vive sobrecarregada… e acaba estando mais apto a enveredar por esse caminho.

S: Você sempre
se enxergou
como uma menina negra?

Eu sempre passei por esse problema de para os negros, ser branca demais, e para os brancos, ser negra demais. Aí isso sempre foi confuso, assim, na minha cabeça, sabe? Só que eu reconheço que tenho traços, que as minhas, é… Por mais que a pele seja clara… [não quer dizer que eu não sou negra]. E reconheço os privilégios de quem tem a pele mais clara sobre quem tem pele mais escura. Tento respeitar o lugar de fala de quem tem pele mais escura… 

“Mas por que ter a pele mais clara traz privilégios para a pessoa afrodescendente, se ela ainda assim não será identificada como branca? Porque ela, mesmo sendo identificada como “negra” pela sociedade racista, o que significaria que ela não poderia desfrutar dos mesmos direitos que uma pessoa branca, ainda assim é mais “agradável” aos olhos da branquitude e deve/pode, por isso, ser “tolerada” em seu meio. Esse é um aspecto muito importante no colorismo: a pessoa negra é tolerada, mas não aceita, pois aceitá-la seria reconhecer que a diferença é existente e que é possível vencer o preconceito sobre essa “diferença”.
 
Na relação branquitude-pessoa negra de pele clara, o importante não é convencer-se de que aquela pessoa seja na verdade branca, mas sim conseguir ignorar seus traços negros a ponto de conseguir imaginá-la branca, a ponto de poder suportar sua presença que, por causa do racismo, é vista como intrusa.
 
A presença de pessoas negras cujos traços físicos são mais aceitos pela branquitude, em espaços que ela pretendia manter exclusivamente brancos, provoca a camuflagem do racismo ainda vigente na nossa sociedade.” Leia mais sobre o colorismo no texto de Aline Djokic para o site Blogueiras Negras.

LL: Não me reconheço como branca. Até quando eu não entendia [dessa questão], eu me entendia como parda. Mas como branca, nunca. Porque eu eu sabia que não. Só que sempre teve esse conflito e até hoje eu sinto que ainda tem. À vezes eu fico receosa, eu não vou mentir, de dizer que eu sou negra e as pessoas mais escuras me julgarem, entendesse? Eu fico nesse conflito ainda. Mas para mim, eu sempre vou levantar, no meu trabalho, a bandeira da questão de raça também. De raça e classe. Independente se as pessoas me enxergarem como branca, como negra, como parda. Eu me identifico como negra não só porque eu tenho parentes [negros] mas traços também, né.

S: Queria que falasse um pouco sobre a música “Quantos inocentes ainda vão sangrar?”.
O que te levou a
escrever sobre isso?

Essa é a música que eu mais gosto. Muitos já chegaram para me dizer que é cansativa a letra, sabe, porque é muito grande. Mas para mim não, para mim tudo ali precisava ser dito. Não dava para eu cortar nada, nenhum verso.

Passava na televisão vários casos do Rio de Janeiro de jovens sendo mortos. Mas não só na televisão, perto de mim [também], né? Na comunidade onde eu morava, que era o Ibura, Dois Carneiros. [Eu] via jovens morrendo. E por que a maioria "coincidentemente" era de negros? E a polícia, principalmente, a gente sabe que… Na verdade, quando a gente vai para um protesto ou qualquer lugar que conteste a ordem, qualquer ação, a gente conhece de verdade quem é a polícia. Mas na periferia é muito pior porque eles já chegam com sangue nos olhos para ferir e fazer maldade com alguém, sabe? Então eu comecei a observar esses casos e ler sobre o tema e fiz essa letra sobre o genocídio da juventude negra. E aí, coincidentemente, pouco tempo depois, aconteceu o negócio com Mário, que a letra casou perfeitamente. 

“Mário sabia da proximidade de sua morte. Aconteceu precocemente. Quando tinha apenas 14 anos. Seu corpo recebeu duas coronhadas e três tiros. Naquele dia, o menino seguiu as instruções da mãe. Nunca, em qualquer hipótese, deveria reagir durante uma abordagem policial. Então, primeiro ajoelhou no chão e pôs as mãos na nuca, como mandou seu algoz. Em seguida, deitou. Nunca mais retornou à vida. A execução aconteceu diante de dezenas de pessoas na Avenida Dois Rios, no Ibura. Cerca de um mês antes, a CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens chegava a conclusões já conhecidas dos movimentos sociais. Mata-se quatro vezes mais negros que brancos no Brasil.” Leia mais no texto de Marcionila Teixeira para o portal Diario de Pernambuco

LL: Eu até pretendo fazer um clipe e falei já com a mãe dele, do Mário, sobre isso. Ela concordou em participar. Para a música ser usada como uma coisa que toque mais as pessoas, mobilizá-las para que a justiça seja feita. Que esse cara que matou o Mário vá a júri popular, a intenção é essa. Então essa é a letra mais importante para mim. E tenho várias outras letras falando sobre isso. Na última música que eu lancei, eu falo sobre o Pacto Pela Vida [operação da Polícia Militar em Pernambuco]. É assim… Pode falar? 

Nesse jogo engenhoso, ardiloso / O dano é doloso / Sua cabeça é prêmio / Tronco, sinhás, senhores, escravos, capitães do mato do novo milênio / Tentam nos fazer acreditar que é fruto do acaso / que não é corriqueiro, que é caso isolado / Mas todo dia vemos o mesmo quadro / De um lado um enquadro, do outro já ouço de novo um disparo / Qual o culpado, verdadeira vítima / Violência gratuita ou reação legítima / Estado genocida ceifando vidas / E é muito fácil o dedo apontar, difícil apontar a saída / A própria sociedade que cria, julga delinquente / Incita a utopia no que tem na vitrine / Educação reprime / torna perversa a mente / Aí mata ou prende, onde só piora e não ressocializa / A favela é quem sente / Impacto do estrago assinado, firmado no pacto pela vida de quem? / Cada vez mais medo desse tal suposto cidadão de bem

LL: Enfim, aí continua a música, mas nessa parte eu questiono o Pacto pela Vida. Pela vida de quem? É um estado genocida. Eu sou contra isso de "bandido bom, bandido morto”. A gente não pode destruir o problema se a gente é a causa dele. Senão vai morrer um e vai nascer muito mais, sabe? Então o problema é isso, a sociedade incita a utopia no que tem na vitrine, a sociedade cria o marginal, julga delinquente, mata ou prende, onde piora e não ressocializa. Ou seja, é um ciclo que existe justamente para isso. 
 
A polícia daqui é a que mais mata mas também é a que mais morre. Eles são treinados já. Você pode até chegar na polícia, quando for fazer o concurso, afim de “Não, vou proteger a pátria” e tal. Mas quando chega lá, o treinamento é… são treinados para matar, sabe? Então isso já é outra letra… É um tema que, por mais que eu já tenha falado nessa música, é impossível não bater nessa tecla e falar de outras formas.

S: O hip hop
é um movimento que
tem como pilar o
questionamento do social.
Tem alguma coisa
que o impede
de fazer isso hoje em dia?

Eu acho que sim. É a questão do ego. Até entre os próprios caras, o ego ainda está sendo maior do que do que o ideal, que deveria nos unir em prol da ascensão de todos. Eu, hoje em dia, ainda escuto o rap mais old school do que os mais recentes. O pessoal de agora tá tão focado em dinheiro, em grana, em fama… Muitos não cantam o que vivem ou cantam só chapação, droga, curtição… O entretenimento existe, tem que ter… mas eu acho que o foco, a essência do hip hop, que é essa questão social, esse engajamento, não pode se perder. E ultimamente está se perdendo. O dinheiro e a fama… ninguém vai ser hipócrita e dizer que não quer. Mas o intuito do trabalho tem que ser você fazer o que gosta e dar voz a outras pessoas, se expressar. Mas para a maioria de agora, o ego, a obsessão por fama e dinheiro tá vindo à frente. E isso faz cair a qualidade.

Ser mulher no hip hop já é difícil. Ser mulher feminista, ou seja, aquela mulher que vai tocar na ferida deles, é pior ainda. É boicotada duas vezes. E entre eles também tem boicote. Potencial e talento todos têm, o problema é canalizar isso de forma positiva. É não ser oprimido de um lado e opressor de um outro. Porque isso não faz sentido. Como é que você vai lutar contra um sistema se você está reproduzindo ele? Porque o machismo é a uma coisa do sistema, sabe?

S: Queria voltar a falar do graffiti. Ele tem essa vantagem de conseguir dominar espaços aos quais certas pessoas não têm acesso…
Como é sua relação com o graffiti hoje?

Eu acho que o graffiti é a arte visual mais democrática, a que mais chega perto das pessoas que mais necessitam dela. Mais do que, por exemplo.. pinturas. Assim, é massa, mas está sempre em galeria. Geralmente. O teatro também é bem elitista porque o valor para você entrar… O hip hop é uma cultura acessível. E por ser tão lúdico, tão despojado, é uma coisa que chega mais perto das pessoas. O graffiti principalmente, por estar na rua. A pessoa queira ou não queira vai ver aquilo. Só que eu viajo não em arte por arte, só por ser bonito, só estética. Eu foco mais na mensagem do que na estética. É lógico que eu quero que fique bonito, né, quero melhorar nas técnicas, mas a minha principal preocupação é que alguém olhe para ali e aquilo ou mude o pensamento da dela ou faça ela questionar, pensar, refletir a respeito. Aí os temas dos [meus] graffitis são sempre os mesmos temas das [minhas] letras. Como eu faço três coisas [dentro do hip hop], como eu ainda treino break dia de semana, eu estou me dedicando mais ativamente ao rap porque, geralmente, é o que mais toca as pessoas. Estou pintando esporadicamente. Mas eu continuo pintando.

 S: O que
o hip hop
 significa 
 para você
 hoje? 

O hip hop, para mim, é mais do que uma coisa cultural. É um movimento mesmo, é meu estilo de vida, de pensar, sabe? Eu acho que se não fosse o hip hop, eu podia estar em depressão, alguma coisa assim, com tantas coisas ruins que eu vejo no mundo. O hip hop é a forma que eu tenho de externalizar artisticamente o que eu sinto, o que eu sou, o que vivo. E também dar voz a outras pessoas. O primeiro som que eu ouvi foi de Facção Central, Eduardo. Para mim, ele é o melhor letrista, melhor compositor do Brasil. É lógico que tem compositoras mulheres massas… Mas comparando, no geral, para mim ele é o mais porque ele consegue se pôr na pele de várias pessoas. Ele pensou sobre pessoas deficientes como se ele fosse a pessoa deficiente falando. Ele, que é um homem, conseguiu falar pela mulher negra… e falando como se fosse ela. Aquela música de Yzalú, "Mulheres Negras", foi ele que compôs e deu para ela interpretar. Então esse é o meu objetivo também, falar não só das minhas dores, mas falar das dores de outras pessoas oprimidas também. Então o hip hop para mim é isso. É minha vida, assim.

Enquanto o couro do chicote cortava a carne,  

A dor metabolizada fortificava o caráter 

A colônia produziu muito mais que cativos,  

Fez heroínas que, pra não gerar escravos, matavam os filhos 

Não fomos vencidas pela anulação social,  

Sobrevivemos à ausência na novela, no comercial 

O sistema pode até me transformar em empregada,  

Mas não pode me fazer raciocinar como criada 

Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo,  

As negras duelam pra vencer o machismo,  

o preconceito, o racismo 

Lutam pra reverter o processo de aniquilação  

Que encarcera afrodescendentes em cubículos na prisão  

Não existe lei Maria da Penha que nos proteja, 

Da violência de nos submeter aos cargos de limpeza 

De ler nos banheiros das faculdades hitleristas, 

“Fora macacos cotistas” 

Pelo processo branqueador não sou a beleza padrão, 

Mas na lei dos justos sou a personificação da determinação 

Navios negreiros e apelidos dados pelo escravizador 

Falharam na missão de me dar complexo de inferior 

Não sou a subalterna que o senhorio crê que construiu, 

Meu lugar não é nos calvários do Brasil 

Se um dia eu tiver que me alistar no tráfico do morro, 

É porque a lei áurea não passa de um texto morto 

 S: O que o público 
 pode fazer 
 para que as mulheres  tenham mais espaço 
 para mostrar seus  projetos? 

Eu acho que o principal é presença. Não adianta tanto as pessoas apoiarem pela internet. A gente precisa do apoio presencialmente. Não só para ter aquela energia do público, que isso dá motivação à gente, mas principalmente para valorizar nosso trabalho e para os produtores não poderem dar essa justificativa de que não dão visibilidade, oportunidade às mulheres por não ter público. Mas também compartilhar o som na internet… Muita gente vangloria caras que têm letras machistas e as minas que estão lá produzindo não consomem. Muitas mulheres ainda dão mais valor aos caras do que às próprias mulheres.

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