top of page

dee jah à mulher cromaqui

por ANA CARLA SANTIAGO

Estava em casa amufinada

Sem ver a luz do dia

Caiu um raio em mim

Me mostrou o que eu não via

(Amufinada)

Era uma tarde de segunda-feira quando cheguei na Rua do Amparo, número 159. As ruas do sítio histórico de Olinda estavam calmas de um jeito que eu nunca tinha visto antes, muito mais do que nos dias de domingos e feriados em que eu ia à Praça do Carmo para ensaiar com um grupo de Maracatu. O Amparo já era um velho conhecido meu, carnavalesca que sou. Mas o número 159, mais conhecido como o Ateliê Iza do Amparo, sempre passou despercebido por mim até aquela segunda.  Para quem não sabe, Iza do Amparo é uma famosa artista plástica da Cidade Alta e mãe de uma das cantoras e compositoras mais debochadas e bem humoradas que só Olinda poderia nos oferecer: Catarina Lins de Aragão. Ou, simplesmente, Catarina Dee Jah.

 

A primeira vez que cruzei com Catarina foi em 2014, na época em que o Movimento Ocupe Estelita promoveu shows no terreno do Cais José Estelita, no Recife. Ela estava com seu filho caçula e abracei-a, bem tímida, enquanto ela me tratou como se fôssemos velhas conhecidas. Conversamos um pouco sobre seu trabalho e ela seguiu, deixando a impressão de que seu lugar não era em um pedestal artístico. Catarina é a famosa “gente como a gente”.

 “CATARINA 
DEE JAH 
PODE SER 
VOCÊ!” 

Voltando para o Amparo, lembro quando ela chegou cheia de sacolas de um supermercado, pedindo desculpas pelo (curto) tempo que fiquei a sua espera. “Fui ao supermercado fazer feira e acabei me atrasando um pouquinho por causa das filas”, se explicou. A primeira coisa que passou pela minha cabeça: como assim uma artistas dessas, figura conhecida na cena musical pernambucana - e que tem um trabalho que eu aprecio há anos - faz feira como uma pessoa comum?. “Eu trato as pessoas com muita naturalidade. Parece que é uma baixa [auto] estima que o fã tem, chega e fala “meu deus, como você é legal!”. Por que isso? A gente é tudo gente, passa dificuldades, faz feira…”, explicou a própria Catarina durante a nossa conversa naquela tarde.

Durante os shows, ela costuma dizer “Catarina Dee Jah pode ser você!”, insinuando que qualquer um poderia estar no lugar figurativo que ela ocupa atualmente.  Humildade com a qual, realmente, muitos fãs não estão acostumados hoje em dia.

 

O Ateliê, casa em que ela e seu irmão, conhecido como Paulo do Amparo, cresceram, dá dicas do ambiente artístico que incentivou a garota a construir uma carreira musical. Quadros, pinturas e blusas pintadas à mão ficam espalhados pelos cômodos. Seus pais se conheceram na Bahia na década de 1970 e aportaram no Amparo quando Catarina e seu irmão eram crianças. Os dois, artistas plásticos, incentivaram a pintura na vida dos filhos desde pequenos. Catarina lembra que desde os 12 anos já pintava e ajudava Iza com as encomendas de pinturas em tecido. A pintura, inclusive, foi uma prática muito além da “vibe” artística: também serviu de sustento para a cantora e a sua filha mais velha, que hoje já está com 23 anos.

 

Catarina virou “Dee Jah” desde a adolescência. Mas só incorporou o nome artístico quando começou a produzir festas - o seu primeiro passo no cenário musical olindense. Seu pai tinha muitos vinis e foi deles que ela absorveu o Jazz, a MPB e a Bossa Nova. Depois, ela veio a apreciar o Punk Rock e o Hip-Hop. Na frente do Ateliê, morava Seu Pinininho, o criador da Mulher Do Dia (um bloco de carnaval de Olinda), que ouvia Brega, Cumbia, Merengue, Guaracha ou “as músicas dor-de-corno”, como definiu a artista. “Quando Seu Pinininho se mudou e meu pai se separou da minha mãe, eu fiquei atrás dessa minha memória musical. Então, comecei a ir aos sebos e comprar vinis. Fiquei com um acervo muito grande e foi aí que comecei a discotecar, promover festas e a conviver mais com a classe musical daqui - que eu já convivia desde os anos 1990, na época do Manguebeat”, explica.

Catarina [Dee Jah] talvez seja a personificação do humor e sarcasmo de Olinda. Um tipo de humor malandro, despojado, que só quem é olindense sabe como é. “Olinda é o bairro mais legal de Recife”, ela costuma dizer. E foi justamente isso que fez com que ela desse seu segundo passo no mundo musical: transitar das discotecagens em festas para os estúdios de gravação. Segundo ela, o cantor pernambucano China, que criou o Selo Joinha Records, a viu cantando e interagindo de uma forma única, bem humorada, com o público em uma das suas festas e a convidou para gravar o seu primeiro material.

 

Foi então que o EP Catarina Dee Jah foi lançado, em 2007, com apenas quatro músicas, e tudo aconteceu muito rápido: a cantora realizou turnê em São Paulo, foi capa de revistas, fez gravações com a antiga MTV Brasil e teve participações em grandes festivais como o Coquetel Molotov e o Recbeat. Tudo isso com ótimas repercussões. “Acho que me ‘hyparam’ muito cedo. Foi surreal aquilo para mim”, comenta. “Lembro que abri um show de Mallu Magalhães, cheio de gente que não conhecia meu trabalho, provavelmente. Então fui “ninja”, peguei todos os chocolates do camarim e fiquei lá ‘Quem quer Bis?’ e jogava para a platéia. A galera ficava ‘Eu quero! Canta mais!’”, relembra, aos risos, a primeira vez que encarou um público com cerca de 2 mil pessoas.

“NO RECIFE 
E EM OLINDA, 
 A GENTE 
 TEM MAIS 
 ARTISTA 
 DO QUE 
 PÚBLICO” 

Após o EP, Catarina inscreveu seu trabalho em vários editais para gravar o primeiro álbum. Foi recusada em sete deles. Para ela, o motivo seria seu estilo “inclassificável” que não se encaixa em padrões cobrados por estes editais de cultura, que, em suas palavras, folclorizam demais a cultura popular - o conceito do “Bumba-meu-ovo”. “A vivência que eu tenho de Pernambuco já me faz ser da cultura popular, mas dentro do meu estilo. Seja num protagonismo de uma mulher que se desconstrói, que tem humor, que não é passiva, que gosta da noite… e é esse universo que eu trago pras minhas músicas. Mas como essa minha forma não se encaixa no conceito que os editais têm de cultura popular, o disco acabou sendo recusado. Sem contar que no Recife e Olinda, a gente tem mais artista do que público”, opina. Depois dos perrengues com os editais de cultura, Catarina decidiu gravar seu primeiro disco de forma independente. Toda a produção foi realizada novamente pelo Joinha Records e dessa forma, em 2013, nasceu o Mulher Cromaqui. Composto por músicas recheadas de um humor bastante peculiar, as críticas surgem de cara no nome do CD. “Cromaqui” seria um trocadilho para “Coma Aqui”, uma crítica feita à condição da mulher construída pela mídia que, na época do lançamento do CD, exaltava bastante as famosas “mulheres frutas”.

O feminismo já veio forte na arte de Dee Jah antes mesmo de ela ter noção do que era ser feminista. Músicas como “Kay Fora” e “Mulher Tira-Gosto” já exaltavam a figura de uma mulher dona de si, empoderada e sabia muito bem o que queria. Enquanto outras, como “Raça Desunida”, seriam uma crítica à desunião das mulheres causada pelo machismo. Esse discurso é o que ela mesma chama de “feminismo intuitivo”.

SE VOCÊ ACHA QUE EU SOU SÓ MAIS UM SEU BRINQUEDINHO

PODES CRER, FIQUE SABENDO

VOU SAIR DE FININHO

(Kay Fora)

O feminismo realmente é intuitivo na persona de Catarina Dee Jah. Desde pequena, sem papas na língua, sempre questionava porque era proibida de certas brincadeiras por ser menina. No São Bento, escola religiosa de Olinda na qual estudou quando criança, ela conta que havia uma área da Igreja onde estão localizadas as catacumbas de vários monges, em que era proibida a entrada de mulheres. “Certo dia, durante a apresentação do Coral Gregoriano da escola, entrei na área “proibida” e fiquei pisando em cada pedaço de terra, enquanto cantava ‘mulher pisando, mulher pisando’” relembra aos risos.

 

Quando mais velha, ia para o colégio de bicicleta e era assediada na rua por homens que apalpavam seu corpo. Como resposta, passou a atacá-los com pedras. Enquanto cantora, era ignorada por produtores e empresários que duvidavam que ela fosse a artista que iria se apresentar nos shows. Outro dia, quando estava no palco em seu show, um homem tentou lhe agarrar e recebeu chutes e golpes de capoeira -  típicas respostas que vêm com a malandragem de quem foi criada em Olinda. “Eu queria ser mais de boa, mas tive que me tornar assim, forte, brava, reativa, por causa do machismo”, lamenta.

 

Para Catarina, há uma falta de incentivo para que mais mulheres se engajem em uma carreira musical. “Na verdade, quase nenhuma família acha legal ter filho músico, porque é uma loteria muito grande. E eu acho que esse ambiente hostil dos nichos, de gerar-se uma concorrência muito grande, a questão do edital público também, isso tudo influencia muito para que não haja esse incentivo". Também, segundo ela, há o fato de existir uma certa “camaradagem” entre os homens, um comportamento que não se estende às mulheres e acaba por invisibilizá-las na cena da música. Entretanto, para a multiartista, isto é algo que está em desconstrução, por causa do grande destaque para debates de gênero que está havendo nos tempos atuais.

Muitas feministas apoiam a criação de um sistema de cotas em shows e festivais para incentivar o surgimento e aparição de mulheres musicistas. Mas, na opinião de Catarina, isso não seria uma solução viável. “Eu quero cantar e tocar porque gerei uma empatia com meu trabalho, conquistei público e minha obra é boa, e não por causa de cotas, por ser apenas mulher. Acho que as mulheres devem se unir e, de repente, fazer ações onde há uma predominância feminina e daí ir conquistando o mercado”, opina.

 

E para os que dizem que falar é muito fácil, a artista realmente põe em prática o que defende: no ano passado, foi uma das organizadoras do SONORA - Ciclo Internacional de Compositoras, evento independente que reuniu musicistas femininas, iniciantes e profissionais, para realizar apresentações durante um fim de semana. Os planos são dar continuidade ao projeto, justamente para incentivar que mulheres tenham mais destaque no cenário musical da cidade. Os únicos obstáculos são realizar os encontros, já que as organizadoras têm uma agenda bastante cheia por causa dos compromissos profissionais.

 

Nesse tempo, Dee Jah criou mais uma figura para o seu acervo de “personagens”: a MC Ririca, projeto em que ela canta e performa apenas com bases de batidas e ritmos  do seu pen drive. Como não poderia ser diferente, MC Ririca faz um trocadilho com a expressão popular para masturbação feminina - “siririca” - e com o “faça você mesmo” (expressão vinda do inglês Do It Yourself, que foi bastante difundida e utilizada no movimento Punk Rock da década de 1970), já que Catarina performa apenas com sua voz e batidas eletrônicas.

REALIDADE 
É… 
DESILUSÃO 
(Hey Mãe)

Logo após o lançamento do "Mulher Cromaqui", Catarina passou um grande tempo longe dos palcos, das festas e dos holofotes. Motivo: dificuldades financeiras. O dinheiro ficou curto para investir em uma banda fixa depois de levar um golpe de uma produtora com a qual trabalhava. Um baque para a olindense. Ela decidiu morar um tempo em São Paulo, onde se considera muito mais respeitada profissionalmente do que na cidade natal, mas voltou em pouco tempo por causa dos seus filhos. “Eu não consigo ser um pessoa fria. Coisas que acontecem comigo ou com a minha família refletem no meu trabalho. Então, eu abri mão de muita coisa por causa da minha família. Eu optei por estar aqui durante o crescimento das crianças para depois, quem sabe, até me mudar para SP com eles. Ainda penso muito nisso”, pondera a cantora, que, aos poucos, está concretizando seus planos de volta aos palcos pernambucanos. 

A habilidade de se reinventar e garantir seu sustento financeiro trabalhando “com o que tem” veio por influência da mãe, Iza. Atualmente, Catarina também realiza decoração de festas e prepara quitutes por encomendas. Atividades que podem parecer comuns, mas feitas por uma artista, acaba tendo um toque de originalidade. “A principal coisa que a minha mãe me ensinou foi a me virar com o que eu tenho. A gente tenta adaptar as coisas né? E nós temos uma criatividade grande, acho que isso faz parte do universo do artista e está impresso em tudo que eu faço e na forma que eu encaro as coisas”, justifica.

Catarina são muitas em uma só. Não há definição concreta e específica. Nasceu Catarina Lins de Aragão, mulher, mãe e olindense. Na adolescência, como produtora de festas e DJ, se tornou Catarina Dee Jah. Quando pinta, se torna Catarina do Amparo - uma extensão, talvez, da sua mãe, Iza. Incorporando mais uma de suas faces artísticas, apenas com um pen drive, é a MC Ririca. No Mulher Cromaqui, preferiu assinar apenas “Catarina”, dispensando o Dee Jah, porque muitas pessoas acabaram por ter preconceito com o apelido (por ligá-lo ao black, ao rasta e ao reggae). Às vezes, vira Catarina Decorações, quando se torna decoradora de festas. Criou os Quitutes Dee Jah, quando cozinha seus brownies, doces e comidas veganas para encomendas. São várias numa só e para ela é difícil dar conta de todas. Mas para nós, só há admiração pelas tantas Catarinas existentes no mesmo mundo que a gente.

bottom of page