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SANNI: “É preciso criar uma noção de que a realidade deles [homens] também é relativa, e não absolut

  • psonar
  • 14 de jun. de 2017
  • 8 min de leitura

“Photofobia” é o álbum de estreia de Sanni Est, pernambucana radicalizada em Berlim. Ainda que não esteja finalizado, o projeto passou pelo Brasil no em uma mini turnê por Recife, Natal, Rio de Janeiro e São Paulo no início de 2017. Nele, a artista fala da rejeição aos conceitos e instituições operados por e para homens, exclusivamente - o que se entende até a ideia de conhecimento: “luz”, para os iluministas.


De volta a Berlim, onde costuma performar e produzir conteúdo, ela conversou com o Sonar sobre o seu trabalho autoral, suas influências, o machismo e sua experiência como artista e mulher trans entre Berlim e Brasil. Confira abaixo.


Sanni

S: Seu último show apresentado no Recife, o “Photophobia”, tinha como objetivo “ressignificar a posição da mulher no mercado cultural e em outros segmentos da sociedade”. Você poderia dar mais detalhes sobre essa ressignificação?


Antes de mais nada, eu gostaria de ressaltar que essa informação foi editada de uma entrevista oral e ficou assim. Eu não teria a pretensão de achar que o meu show ou o meu álbum (em desenvolvimento) “Photophobia” sozinho pudesse ressignificar a posição da mulher no mercado cultural! Mas eu posso explicar o que me motivou a dizer isso, sim!


Enquanto artista mulher, eu não pude deixar de notar que a imagem e a função da mulher em muitas, senão todas as vertentes artísticas e culturais, são majoritariamente decorativas ou subalternas a uma dominância masculina: cantoras, tão produzidas a ponto de representarem um padrão de beleza e sexualidade inalcançáveis; musas de pintores; objetos sexuais em filmes, comerciais, revistas, desfiles de moda. A imagem da mulher nunca é levada tão a sério quanto a do homem, portanto mulheres nunca são levadas tão a sério quanto homens, em todos os aspectos. Espera-se da mulher que a função dela seja agradar o olhar e os ouvidos do homem cis heterossexual!


Quando uma mulher canta, espera-se que sua voz e seu jeito de cantar sejam suaves, que suas letras falem de amor. E quando uma mulher se propõe a fazer “o mesmo” que artistas homens fazem, há uma pressão tremenda que ela o faça duas vezes melhor. Não se espera que ela seja tão competente quanto um macho - sem falar que ela só tenderá a ter chance no mercado se atiçar o olhar masculino. É muito raro ver mulheres que escrevem, compõem e performam, e isso não é coincidência nem falta de interesse de nossa parte, é resultado dessa subestimação da mulher e estigmatização do papel e imagem femininos na arte.


Pensando nisso tudo, eu escrevi o conceito-manifesto do meu álbum Photophobia, no qual cito diversos campos do conhecimento e da cultura e enfatizo o quanto eles são noções eurocêntricas, heterossexuais e masculinas! O que se entende enquanto medicina vindo da Europa, é tido como ciência; outros tipos de medicina são crendices, costumes, alternativas; os exemplos seriam infinitos. O que importa é que o que um homem branco fala ou escreve, é fato; o que qualquer outra pessoa fale ou escreva, é relativo, é pessoal.


E eu me recuso a aceitar a realidade vista apenas pelos olhos de homens brancos. Se eles inventaram a medicina, eu sou alérgica a ela. Se eles esperam que a minha sexualidade, por eu ser mulher trans latina, pertença a eles, eu os deixarei na mão. É preciso criar uma noção de que a realidade deles também é relativa, e não absoluta. E no meu álbum eu explico, por exemplo, como a violência de um macho branco contra mim pode ser vista pelos olhos dele como desejo e amor. Eu descrevo, em uma outra música, a minha dor enquanto consequência da ignorância do homem branco hétero que não soube lidar com a minha pessoa, as minhas sentimentalidades, e não como fragilidade ou carência minha. Percebe a diferença?


Então o nome Photophobia foi uma metáfora que eu fiz à minha rejeição contra essas noções de arte, ciência e cultura masculinos e a necessidade de reinventá-las nós: mulheres, bichas, pretas, faveladas, funkeiras, analfabetas. Se até o próprio conhecimento em si (no Iluminismo, luz) é um conceito exclusivamente masculino, eu me recuso a aprendê-lo, portanto “fotofobia”.


S: Há diferença na cena artística do Recife e da Alemanha no sentido de discriminação de gênero? Quais são elas?


O meu projeto autoral (debutando com o Photophobia) ainda é muito recente e as minhas experiências em Recife foram realmente pontuais, então eu não teria parâmetros de comparação ainda.


A impressão que eu tive no Brasil em geral (também me apresentei em São Paulo, Natal e no Rio de Janeiro), foi que eu realmente fui mais levada a sério do que em Berlim! Devo ressaltar que aqui a cena eletrônica domina quase tudo e os eventos acabam meio que girando em torno disso. Mesmo quando eu tenho um show do meu projeto autoral, acaba rolando um - ou vários - sets de DJ depois; o show (ou shows) em si não é a atração da noite, entende? Daí acaba que os DJs meio que têm um papel mais importante na noite, ou na cena em geral, e são em sua maioria homens.


Então mesmo quando as pessoas vêm me dar um feedback sobre o meu trabalho, muitas vezes o fazem do ponto de vista da música eletrônica: comparam o formato, as batidas das minhas composições, com música house ou techno, como se o que eu faço fosse uma vertente, um subgênero da música eletrônica que eles estão habituados a ouvir e esperando ouvir na noite. E olha que eu tenho música com violino, pandeiro e canto lírico… Isso cansa um pouco e não me traz muito input como pessoas que se interessam por música em geral. Fora que os técnicos de som também são sempre homens e muitas vezes eu preciso repetir umas cinco vezes quais os tipos de efeito eu quero no meu próprio microfone pra que meu pedido seja atendido.


Já no Brasil, as conversas sobre meu trabalho sempre são feitas de um ponto de vista mais pessoal, emocional, levando em conta a criatividade e a minha execução das canções enquanto cantora. Isso eu acho uma delícia. Agora quanto ao tratamento, talvez seja porque eu “venho de fora”, ou justamente por ser trans, eu senti um respeito levemente maior aí no Brasil mesmo. Mas como eu disse, as minhas experiências foram muito poucas, e na maioria das vezes, em eventos de amigos e conhecidos, então realmente eu não posso comparar muito os dois lugares.


Sanni

Sanni


S: E sobre a sua experiência como mulher trans, você sente diferença no tratamento das pessoas entre Recife e Berlim? Você diria que a discriminação no meio artístico é maior, menor ou igual à da sociedade em geral?


Na Europa em geral, e especialmente em Berlim, onde todo mundo quer ser “cool”, existe uma urgência em se aparentar ser tolerante, cabeça aberta, entende? Então aqui em Berlim eu quase nunca sofri transfobia direta, na cara. Devo ressaltar também que por ter um passing bastante normativo e não ser lida ao primeiro olhar como trans, eu realmente não posso falar muito de discriminação a não ser no âmbito emocional mesmo, que é o único meio onde eu sinto que é clara a distinção entre o meu valor e o valor de uma mulher cisgênero - para os homens hétero.


Eu aqui também dou workshops de dança, música e produção para adolescentes num projeto de orientação sobre diversidade sexual e de identidade, dou aulas particulares de línguas e trabalho num bar nos fins de semana. Realmente posso dizer que em nenhum desses ambientes de trabalho eu sofro transfobia no âmbito profissional.


Em Recife, posso dizer o mesmo daqui [Berlim]: nos meus círculos mais próximos, sou super bem tratada e até admirada, inclusive na minha família linda, o que me dá uma força enorme e me permite focar nas coisas que realmente importam - nas ruas, sou lida geralmente como mulher cis. Para homens que se interessam sexualmente ou emocionalmente por mim, muitas vezes é tabu. Seja em Recife ou Berlim. Homens hétero, no geral, não foram educados o suficiente para entender que outras realidades, além das construídas para os beneficiar, são possíveis e que outros corpos são tão legítimos quanto os deles. A verdade deles é absoluta, eles vivem numa bolha. Então eles não entendem a existência de mulheres trans. E se eles não nos entendem, não nos respeitam, não nos valorizam, não nos levam a sério.


O que é discriminação?, ela mesma levanta

Discriminação é um boy fazer declarações de amor homéricas pra mim e, enquanto a gente ainda está deitado, nus, na cama, numa conversa romântica sobre os passados de cada um, eu o confesso alguma insegurança do passado relacionada ao fato de ser trans e ele, a partir daquele segundo, não me amar mais.


S: De maneira geral, de que forma a vivência na Alemanha contribuiu para moldar sua identidade enquanto artista e enquanto pessoa? Você chegou aí com 18 anos, não foi?


Sim, eu vim pra cá aos 18 anos. Eu sempre gosto de reforçar que eu moro em Berlim há 10 anos, e não simplesmente na Alemanha. Berlim é uma das cidades mais internacionais e abertas a diferentes realidades em comparação a outros lugares que eu conheço - na Europa e no Brasil. Essa liberdade de morar longe de casa e poder fazer o que quiser, mas ao mesmo tempo tendo que virar adulta e me virar sem apoio financeiro externo, além do contato com a música dance eletrônica - que eu comecei a explorar de verdade aqui - e a acessibilidade a arte e cultura daqui definitivamente me influenciaram muito.


Para mim é quase impossível saber de que maneiras exatamente a minha vivência aqui moldou minha identidade. Vai desde a minha noção de cidadã, fazendo parte e tendo acesso a diversas estruturas daqui - você vê, aqui ricos e pobres dividem os mesmos metrôs, clubes, museus; não são categorizados socialmente por causa dos espaços que permeiam nem nos interesses intelectuais, pelo menos não como no Brasil - até a aprendizagem da própria língua. Alemão é um idioma muito estratégico. Às vezes você fala uma frase enorme inteira e só diz o verbo no final. Você deve estar sempre alerta e ter seus pensamentos organizados. Você deve ter argumento pra tudo, pois tudo pode ser discutido, de maneira lógica e respeitosa - às vezes, distante. No Brasil, muitas vezes discussões sobre ideias são levadas para o lado pessoal muito mais rapidamente do que aqui.


Acho que a soma de todos esses fatores às experiências que eu fiz aqui me tornaram a mulher empoderada, decidida, batalhadora e crítica que eu me considero.


Foto: Juliie Montauk / Divulgação

S: Qual seria uma solução para diminuir ou acabar com o machismo na cena musical pernambucana?


Por mais que o machismo - ou sexismo - seja expressado de maneiras diferentes nas diversas cenas e cidades distintas, a sensação de vivenciá-lo é a mesma, independente de onde se esteja. E o machismo é uma prática infelizmente muito mais internacional do que você pode imaginar. Não acho que o machismo na cena musical pernambucana seja diferente do machismo na cena musical de Berlim!


E de modo geral, não acho que haja uma estratégia, uma solução para um problema. Primeiro, é necessário reconhecê-lo enquanto problema. Então continuemos tematizando, problematizando, fazendo um escândalo! Só assim, algum dia, sexismo será levado a sério o suficiente! Até as pessoas perceberem que o problema é presente e que o fato de certas pessoas não o terem percebido até então só mostra que elas tiveram a sorte (privilégio) de não sofrer do mesmo - ou que, como em outros casos mais trágicos, a pessoa é tão vítima dele que nem sequer considera a possibilidade de um mundo sem ele.


S: Quais artistas mulheres te inspiram? E quais você recomendaria para que as pessoas ouvissem?


Björk, Jonna Lee, Karin Dreijer Andersson, Cássia Eller, Sophie Zelmani, Maria Bethânia, Rihanna, Destiny’s Child, Érica, Elza Soares, Fafá de Belém, Luana Hansen… das que eu consigo me lembrar assim de cabeça.


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O projeto Sonar foi desenvolvido como Trabalho de Conclusão de Curso de Ana Carla Santiago e Gustavo Henrique, estudantes de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), apresentado em 2017.

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